Congregação dos Sagrados Estigmas De nosso senhor Jesus CristoPresente no Brasil desde 1910
Província Sta. Cruz

UM ESTIGMATINO NO ALTO RIO NEGRO-AMAZONAS

UM ESTIGMATINO NO ALTO RIO NEGRO-AMAZONAS

 

Como havia planejado, para o ano sabático que está chegando ao fim, passei 45 dias na Diocese de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Esta diocese está localizada a noroeste do estado nortista, em fronteiras com a Colômbia e a Venezuela, e é, geograficamente, maior que o estado de São Paulo. Conta com uma população aproximada de 65 mil habitantes, constituída em sua quase totalidade de indígenas das mais diversas etnias. São 23 grupos étnicos. Em toda esta área são apenas três municípios (São Gabriel, que é o centro da diocese, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos). A diocese possui hoje dez paroquias, distribuídas nessa imensa área geográfica, com a animação pastoral de 20 sacerdotes. Destes sacerdotes, dois apenas pertencem a diocese de São Gabriel que conta com a presença de alguns sacerdotes de outras dioceses que se dispõem a irem por dois ou três anos e que, normalmente, não renovam seus contratos. Hoje a diocese conta com serviços pastorais de sacerdotes da diocese de Trento (Itália); da diocese de Diamantino (Mato Grosso); da diocese de Montevideo (Uruguay) e da diocese de Madri. A maior presença é de sacerdotes religiosos (salesianos e missionários do Sagrado Coração de Jesus). Toda a região do Rio Negro teve nos mais de 500 anos de história a presença de jesuítas, carmelitas, franciscanos e, a última e mais forte de todas as presenças, dos salesianos. Neste ano de 2015 os salesianos estão celebrando 100 anos de presença nesta região. A região diocesana é constituída quase em sua totalidade como área demarcada de reservas indígenas; o que a torna uma das regiões mais naturalmente conservadas dos estados brasileiros da região Norte. Por isso também é uma das áreas mais cobiçadas pelos extrativistas de madeira; pelos exploradores de minérios e pelos empresários dos agronegócios.

O tempo que vivi ali foi sempre em companhia do bispo diocesano, Dom Edson Damian, um gaúcho de Santa Maria, com 68 anos de idade, com já quase 07 anos de bispo diocesano e vivendo a quase 20 anos na região. Como sacerdote diocesano do clero gaúcho, se dispôs a trabalhar como missionário na região norte do país, onde passou por Roraima e Pará. O Bispo é um homem muito simples, que vive tão pobremente como todos os presbíteros de seu clero e já está bem integrado aos hábitos culturais da localidade. Pude acompanhá-lo em várias atividades e finalmente participar da assembleia diocesana, que teve a participação de quase todos os sacerdotes, as religiosas (salesianas e franciscanas da ação pastoral – as duas únicas congregações femininas presentes na diocese), e 60 evangelizadores leigos.

A experiência mais marcante que vivi neste tempo foi numa viagem de “itinerancia”(*) de 15 dias que realizei em companhia do bispo para visita pastoral na paróquia de laurete, localizada nas margens do rio aupés, bem defronte com a Colômbia. Não e preciso nem esclarecer que em toda a região não existe nenhum quilômetro de estrada em chão asfaltado; o que significa dizer que carro ali não serve para quase nada. Todo o transporte de pessoas e de mercadorias é feito em barcos (os de motores mais potentes chamados de “voadeira”) das mais diferentes potências, até as tradicionais canoas de madeira dos indígenas. Todas as viagens devem ser guiadas por um experiente guia, chamado comumente de “prático”, que conheça bem a região, pois se assim não for, com muita facilidade um desconhecido poderá perder-se no labirinto de ilhas e igarapés.

Voltando a “itinerancia”: subimos o Rio Negro na segunda quinzena de setembro, entramos no rio aupés e fomos enfrentando suas famosas cachoeiras. As cachoeiras na verdade são saltos baixos de água e de fortes corredeiras, com muitas e perigosas pedras. Em muitas delas e preciso transportar barco, motor, galões de gasolina e todo as demais bagagens nas costas, por dentro da mata, e voltar ao rio acima delas. Em vários dias de viagens foram várias as vezes que tivemos que fazer este desgastante trabalho, em um calor úmido sufocante. Com um dia de viagem chegamos em Iaurete. Ali dormimos e no dia seguinte iniciamos as visitas às comunidades ribeirinhas em Querari, que é um dos pontos extremos do Brasil (na parte superior da área chamada popularmente de “cabeça do cachorro” pela semelhança). O interessante seria descrever a visita em cada comunidade ribeirinha, mas isto tornaria este escrito muito extenso e até mesmo cansativo. Assim descrevo o ritual mais comum realizado na maioria delas. Visitamos duas comunidades por dia e, no último dia quando as forças humanas já estavam quase acabando, fizemos três. Todas as comunidades tinham previamente recebido o “bilhete” anunciando a chegada do Bispo. O barulho do motor de nossa “voadeira” era escutado a distância e prontamente quase a totalidade dos habitantes da localidade vinham para a barranca do rio fazer a recepção. Me chamava sempre a atenção que os mais velhos se dirigiam ao bispo com muita solenidade, chamando-o inclusive de EXCELÊNCIA. Dali éramos levados para a “palhoça”, que no passado era a casa-residência-comum de toda aldeia, mas hoje é a casa da celebração dos acontecimentos da vida que envolve esta mesma aldeia. Hoje cada família já vive em sua casa específica. Depois das palavras de boas-vindas, das manifestações de alegria pela nossa presença, (que demoravam largamente. Índio não tem pressa para nada!), nos serviam uma água misturada com a farinha de mandioca, chamada de “xibe”. Só depois disso éramos deixados a sós ali na palhoça mesmo. Ali armávamos nossas redes e íamos para o rio tomar banho. Ato seguido, começávamos o atendimento das confissões. Atendi centenas de confissões em diferentes línguas nativas, sem entender nenhuma vez de que pecado se tratava, e em todas elas dei absolvição. O Espírito Santo que é o Senhor das línguas que resolva este impasse.

Depois de longos tempos atendendo confissões, na hora que havia sido previamente fixada, celebrávamos a Eucaristia. Em quase todas as comunidades houve o sacramento da confirmação; em várias também o batismo e em algumas outras, também o matrimônio. Tudo isso numa só celebração. Em quase todas as comunidades a celebração deveria ser feita enquanto houvesse luz do sol, poucas são as que tem um pequeno motor gerador de energia, movido a óleo diesel. Depois das celebrações se realizava a “quinhapira”, que é a comida comunitária; sempre a base de peixe cozido na água com muita pimenta (mas muita mesmo!, e quase nenhum sal. Raríssimas vezes o peixe foi servido frito pois há dificuldade em ter o óleo, por ser muito caro); sempre com o “biju” feito de farinha de mandioca, em tamanho grande e massa grossa. Às vezes, muito poucas mesmo, uma carne de aves ou animais silvestres (mutum, paca, jacaré...). Tudo sempre é servido nas panelas e se come tomando tais alimentos com as próprias mãos. Não há o costume de pratos ou talheres. Foram 14 dias comendo tanto peixe cozido que por um bom tempo não quero saber de comer peixe.

No escurecer todos se recolhiam as suas casas e nós em nossas redes. O cansaço já era grande. Nos primeiros raios do sol, e mesmo antes dele, todos da comunidade já estavam despertos e banhando-se no rio. Ao bater o sino, todos os que ainda não haviam saído para a sua pescaria ou trabalho na roça de mandioca, se reuniam na capela e o catequista local dirigia a oração. Em algumas comunidades esta pratica é realizada diariamente. Em outras, somente aos domingos.

A comunicação sempre me foi mais fácil com os mais idosos uma vez que estes foram catequizados nas escolas salesianas e foram obrigados a aprender a língua portuguesa. Alguns falam bastante bem; outros tentam se expressar, porém, com muitas dificuldades.

 No âmbito familiar, porém nunca deixaram de usar as suas línguas próprias. Hoje como as escolas são de controle do estado, a língua utilizada pelos professores também é a língua original da tribo. Assim que entre os jovens e as crianças são pouco ou nada o uso do português. Estudam sim a língua portuguesa, mas ela não é a língua de uso diário. Também na evangelização atual há um enorme esforço de realizar a catequese inculturada, com o uso das línguas nativas mais faladas. Neste momento se prepara o encaminhamento dos textos litúrgicos da Missa, na língua nativa tucana, pedindo a Santa Sé sua aprovação.

Toda a riqueza do vivido em 45 dias em contato com estas diferentes realidades não pode ser descrita em poucas páginas. Finalizo esta partilha tendo a clara certeza de que meus horizontes de conhecimentos do Brasil e da Igreja foram ampliados. A encarnação do Verbo Divino continua acontecendo naqueles povos. A cultura indígena primitiva conservou valores humanizadores que a cultura branca técnico-ocidental perdeu ou está em vias de perder. Assim pude perceber que estas culturas têm ainda valores que, a partir deles, ela pode também nos evangelizar. Só para citar um dos mais visíveis aos meus olhos, é o sentido dado aos momentos comunitários.

O ano sabático para mim está sendo um momento de revigoramento e enriquecimento físico, humano, espiritual e eclesial. Sou agradecido a Deus e a província por estar me proporcionando viver este tempo. Creio que faria bem a outros confrades viver um tempo assim.

 

Pe. Valmir Cassim da Silva - estigmatino

 

(*)ITINERANCIA: é o termo utilizado para o período que os padres/religiosas/bispo deixam as suas sedes e saem em barcos, por 08/10/15 dias visitando as comunidades ribeirinhas dos vários rios existentes. Normalmente um sacerdote sozinho consegue realizar três visitas ao ano em cada comunidade. As poucas visitas se devem as grandes distancias geográficas que devem ser percorridas e as despesas financeiras que implicam cada viagem.